O Palácio de Mármore: patrimônio industrial e memória

Texto extraído do artigo Os bailes do Palácio de Mármore na cidade industrial: o Moinho São Jorge e o patrimônio industrial de Santo André (1950-2000) de autoria de Priscila Perazzo, Luís Paulo Bresciani, Carla Sortino Bassi e Maria Cristina Pache Pechtoll, originariamente publicado na revista História e-História (2009), uma publicação organizada com o apoio do Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica da Unicamp.

PERAZZO, P. F.Bresciani, L. P. ; BASSI, C. S. ; PECHTOLL, M. C. P.. Os bailes do Palácio de Mármore na cidade industrial: o Moinho São Jorge e o patrimônio industrial de Santo André (1950-2000). História e-História, v. 00, p. 1, 2009.


 partir da intensa reestruturação produtiva que marcou a região do Grande ABC nos anos 1990, constituída por significativas mudanças tecnológicas, sociais, comunicacionais, urbanas e administrativas, vem à tona o contínuo processo de fechamento ou transferência de fábricas como um dos principais fatores de preocupação relacionado ao desenvolvimento regional. Tal processo tem sido pensado nas relações que o presente e o passado estabelecem em torno das explicações das transformações locais, justificando-se as perspectivas teóricas que a memória social possibilita como método de análise

O Moinho São Jorge permanece localizado numa área em que a desindustrialização é visível e que galpões de antigas fábricas foram reapropriados como uma das estratégias de revitalização da cidade. Assim, um estudo sobre essa empresa, a partir das ações empreendidas no Palácio de Mármore, pode explicar questões acerca do desenvolvimento urbano e econômico da região, bem como a permanência de certas fábricas no mesmo local.

 

A pesquisa sobre o resgate da memória dos moradores da cidade passa necessariamente pelo trabalho e, consequentemente, pela sua relação com a indústria, uma vez que Santo André pautou seu desenvolvimento no setor secundário da economia. Mais do que isso, a cidade de Santo André foi um dos mais importantes pólos de organização de trabalhadores e trabalhadoras, visto estar inserida na região metropolitana de São Paulo e, especificamente, na região do Grande ABC, que é o terceiro centro econômico do país.

 

Não se pode negar a importância do patrimônio industrial e da memória numa cidade como Santo André, com seus 670 mil habitantes, pois se desenvolveu em torno das indústrias instaladas desde 1867, com a construção pelos ingleses da ferrovia ligando Jundiaí ao Porto de Santos. Seu desenvolvimento industrial se intensificou após a II Guerra Mundial no período de industrialização por substituição das importações.

 

Nesse sentido, o Moinho São Jorge apresenta potencialidades de inventários, de registro, de pesquisas histórico-documentais e iconográficas, de entrevistas, de análise arquitetônica, da inserção na cidade, da forma de ligação com os variados setores da sociedade, de transformação no decorrer do tempo e das formas de recepção e percepção. Estas potencialidades despertaram o interesse para esse artigo, em que se discute determinadas manifestações sociais e culturais com o intuito de registrar, revelar, preservar e valorizá-las. Seu Palácio de Mármore é um patrimônio com importante valor arquitetônico, representando uma fase do desenvolvimento industrial brasileiro e, também, suas relações culturais e afetivas com as comunidades que o circundam.

 

O patrimônio industrial do Moinho São Jorge representa o testemunho de atividades que tiveram e que ainda têm profundas conseqüências históricas, revestido de um valor social como parte do registro de vida dos homens e mulheres comuns e, como tal, conferindo-lhes um importante sentimento de identidade. Na história da indústria, apresentou, também, valor científico e tecnológico, para além de um valor estético, visualizado em sua arquitetura, design e concepção.

 

Esses valores são intrínsecos aos próprios sítios industriais, às suas estruturas, aos seus elementos constitutivos, à sua maquinaria, à sua paisagem industrial, à sua documentação e, também, aos registros intangíveis contidos na memória das pessoas e das suas tradições.

 

Em uma reportagem, de 1991, o Moinho São Jorge foi apresentado como o maior moinho do país. Naquele ano, sua produção mensal era de 40 mil toneladas e faturamento mensal de US$ 10 milhões. Foi o responsável pela primeira importação de trigo, de 30 mil toneladas dos EUA, pois, até novembro de 1990, a importação e a comercialização do trigo eram exclusividades do governo federal (FOLHA, 1991). É inegável, por estes dados, o relevante papel econômico que esta empresa representou para a cidade. Esta condição, por si só, coloca o Moinho São Jorge como objeto de estudo no campo do patrimônio industrial.

 

O início das pesquisas e desenvolvimento de teorias a respeito de patrimônio industrial ocorreu na década de 1960, inicialmente na Inglaterra. Desde então o conceito de patrimônio industrial tem se ampliado, de acordo com Leonardo Mello e Silva:

 

Ele não se limita apenas a um conjunto de bens arquitetônicos ou sítios cheios de objetos e partes de objetos interessantes. Uma vez que se detém sobre máquinas, equipamentos, instalações e imóveis onde se processou a produção industrial, o Patrimônio Industrial é também a recolha e o tratamento de um patrimônio técnico de uma sociedade e de uma comunidade, e esse processo está sempre em transformação. Nesse sentido, o patrimônio industrial permite a elucidação da transmissão de um saber técnico. Ele permite estabelecer, hoje, um elo entre as formas de produzir - o que envolve homens/mulheres e máquinas - e a cultura. (MELLO E SILVA, 2006, p.1)

 

 

 

Paradoxalmente, na cidade industrial, não é pelo fator econômico ou pela transmissão de um saber técnico que o Moinho São Jorge é lembrado pelas pessoas, mas sim pelo que proporcionou nos momentos de “não-trabalho”. Isto é, ele é lembrado pelos momentos de lazer e entretenimento proporcionados pelo seu salão de bailes, o Palácio de Mármore.

 

Assim, o Palácio de Mármore representa para o campo de estudo do Patrimônio Industrial algo que vai além da importância dos vestígios que englobam o processo de produção industrial, com suas estruturas e infraestruturas. Ele interessa como local onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria. Como cita o documento do Comitê Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial – TICCIH [[i]], estes locais poderiam ter sido habitações, locais de culto ou de educação (EVANGELISTA, 2006). Neste caso, podem ser acrescentados os locais de lazer e entretenimento.

 

O patrimônio industrial situa-se em um campo de investigação em processo e não se restringe apenas ao conhecimento arquitetônico. É essencialmente multidisciplinar, principalmente ao estabelecer a ligação do componente material (prédio, máquina) ao componente humano (trabalho). As áreas do conhecimento como antropologia, história, sociologia e administração iluminam o entendimento das relações estabelecidas entre o modo de vida dos operários, dos patrões, das pessoas do entorno da fábrica e das elites políticas da localidade onde se estabeleceu a indústria (VICHNEWSKI, 2004 a/b).

 

É por isto que, nesta concepção multidisciplinar, as investigações a respeito do patrimônio industrial somam-se às contribuições advindas do campo de estudo da memória. É da organização da memória de um fato, lugar e/ou época que se obtêm elementos para a construção da identidade e para o entendimento do desenvolvimento de determinada região, por meio da valorização de sua cultura e de sua história. O tempo e o espaço são variáveis fundamentais na atuação da memória e esta, por sua vez, tem um papel fundamental no processo de representação.

 

A memória se faz condição de conhecimento do novo acontecer, determinante de sentido que não esgota o real em sucessão, mas se apresenta como laço em meio a tantas rupturas (ALVES, 1999, p.78).




Referências Bibliográficas

ALVES, Luiz Roberto. Culturas do trabalho: comunicação para a cidadania. São Bernardo: Alpharrabio, 1999.

EVANGELISTA, Rafael. “De arqueologia a patrimônio”. In Revista Eletrônica do Iphan. Campinas: Labjor/Unicamp. Disponível em: <http://www.revista.iphan.gov.br/ materia.php?id=161>. Acesso em: 13 mar.2006.

FOLHA DE SÃO PAULO. “Moinho São Jorge importa 30 mil toneladas de trigo norte-americano”. Folha de São Paulo. São Paulo, 16 jul. 1991.

MELLO E SILVA, Leonardo. “Patrimônio industrial: passado e presente”. In: Revista Eletrônica do Iphan. Campinas: Labjor/Unicamp. Disponível em: <http://www.revista.iphan. gov.br/materia.php?id=164>. Acesso em: 13 mar.2006.

VICHNEWSKI, Henrique Telles. Arqueologia industrial no interior do estado de São Paulo: as Indústrias Matarazzo (1920 –1960). In: História: Trabalho, Cultura e Poder. Encontro de História – ANPUH/SC, X., Reunião Nacional do GT Estudos de Gênero, III., Jornada Nacional de História do Trabalho, II. Florianópolis. Anais...: Florianópolis: ANPUH/SC; PROEXTENSÃO/UFSC, 2004 (a).

__________. As Indústrias Matarazzo: patrimônio industrial no interior paulista (1920 –1960).  In: O Lugar da História. Encontro Regional de História ANPUH/SP, XVII. Anais Eletrônicos... Campinas: FAPESP, UNICAMP, FFLCH/USP, CEAGESP, 2004 (b).


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[i] O TICCIH tem como objetivo apoiar iniciativas de preservação industrial, proporcionar suporte às comunidades e servir também como organização de estudos e pesquisa. Atua divulgando a causa preservacionista, articulando comunidades, organizações da sociedade civil, entidades empresariais e sindicais, tanto na preservação do patrimônio industrial, quanto na busca de alternativas para a sua revitalização. Informação sobre a sessão brasileira pode ser encontrada no sítio http://br.groups.yahoo.com/group/TICCIH-Brasil/.

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