Bailes – lembranças e reflexões

Texto extraído do artigo Os bailes do Palácio de Mármore na cidade industrial: o Moinho São Jorge e o patrimônio industrial de Santo André (1950-2000) de autoria de Priscila Perazzo, Luís Paulo Bresciani, Carla Sortino Bassi e Maria Cristina Pache Pechtoll, originariamente publicado na revista História e-História (2009), uma publicação organizada com o apoio do Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica da Unicamp.

PERAZZO, P. F.Bresciani, L. P. ; BASSI, C. S. ; PECHTOLL, M. C. P.. Os bailes do Palácio de Mármore na cidade industrial: o Moinho São Jorge e o patrimônio industrial de Santo André (1950-2000). História e-História, v. 00, p. 1, 2009.



Para ilustração de como as indústrias da cidade tinham estreita relação com o modo de vida da população, é que se observa como os locais de lazer e sociabilidade, proporcionados pelos clubes destas indústrias, ficaram na memória das pessoas, principalmente os bailes. Um exemplo é o depoimento da Professora Maria Amélia Ferreira Perazzo:


Mais tarde veio o salão de festas do Moinho, que  na época chamava Moinho São Jorge, em Santo André, um salão belíssimo, ali foram dados muitos bailes, bailes de debutantes muito bonitos. Santo André também, quando era mocinha, quando eu tinha quatorze, quinze, dezesseis anos, tinha muitos bailes de debutantes [[i]].


 

O baile era o ponto alto da vida social, a atividade de lazer mais apreciada e valorizada. É o que Joel Ferreira conta em seu livro não publicado, em que relata fatos da história de Santo André por meio da memória de sua infância e juventude (Ferreira, 199-). Ele dedica um capítulo especial aos bailes e os categoriza em cinco classes: os bailinhos em casa; os bailes dos salões paroquiais; os bailes dos salões de clubes de fábricas como Rhodia, Firestone, General Electric, Cerâmica São Caetano, General Motors; os bailes dos salões de clubes esportivos e sociais como o Aramaçan, o Primeiro de Maio Futebol Clube, o Meninos Futebol Clube; e, finalmente, os bailes dos “salões profissionais” como o Brogotá no Rudge Ramos, o Palácio Mauá na capital paulista, e o clássico Palácio de Mármore na cobertura do Moinho São Jorge. Ainda segundo Joel Ferreira, os salões profissionais eram


[...] um tipo de salão de bailes com dançarinas profissionais, onde o freguês chegava, observava, escolhia sua dama, e dançava a mais não poder, desfrutando de uma boa parceira e exibindo todo seu talento de bailarino. [...] O funcionamento era assim: as garotas que trabalhavam nesses salões deveriam ser exímias dançarinas,elas estavam ganhando pra satisfazer o cliente, portanto, deveriam estar sempre em forma e atualizadas sobre novos passos. [...] O sistema de pagamento pelo cliente é que era bastante interessante; existia um relógio de ponto, e cada garota tinha seu cartão, o cliente marca o cartão, e eles dançavam umas tantas seleções conforme se desejasse. No final, a garota marcava novamente o cartão e o rapaz acertava a conta com o encarregado (FERREIRA, 199-).


 

Nota-se que havia uma diferenciação entre o Palácio de Mármore do Moinho São Jorge e os demais salões ligados às indústrias da região. Estes salões faziam parte dos clubes dos empregados das referidas indústrias e o Moinho São Jorge não possuía um clube para seus empregados, mas sim um salão de festas de luxo em sua própria estrutura industrial, como indica o depoimento do economista e ex-funcionário da Rhodia, Sr. Farid Nasser Chedid:


[...] Então você tinha o cinema de sábado e de domingo, que é um programa, eu tinha o esporte que eu fazia durante a semana, e às vezes domingo de manhã, e na época o bom era baile. Então tinham muitos bailes de formatura, bailes domingueiras, matinês, etc. Tinha tudo isso. E a gente freqüentava e dançava. A Rhodia continuou durante certo tempo até, dominando os bailes, porque a maioria dos bailes de formatura era feito lá, porque era o primeiro ginásio coberto que tinha em Santo André. Aí se inaugurou aqui o Moinho São Jorge, que foi um desbunde total na época, porque eles fizeram no último andar um salão de festas enorme que se chamava Palácio de Mármore. É um negócio fantástico. Tem até hoje, só que eles não usam mais como salão. E aí os bailes de formatura passaram a ser no Moinho São Jorge [[ii]].


 

Além do seu próprio valor específico como um moinho de trigo baseado em tecnologia alemã desde sua construção, o Palácio de Mármore também agrega valor arquitetônico como patrimônio industrial, representando uma fase do desenvolvimento brasileiro. Mas é o salão que, neste caso, passa a ser responsável pelas relações históricas e culturais com as comunidades que o circundam e também com a história do país.

 

No registro de Joel Ferreira, o salão era “tão especial” que não havia outro que pudesse concorrer com o glamour que o Palácio de Mármore oferecia:


Este salão era considerado na época o melhor e mais bonito salão de baile da América do Sul – se houver exagero é por conta dos freqüentadores. Ele reinou absoluto durante pelo menos uma década. Todo bailarino da região que se prezasse tinha que dançar pelo menos uma vez no Palácio de Mármore. Era realmente o máximo da sofisticação (FERREIRA, 199-).

 


Na década de 1960, o salão foi palco de bailes, jantares e eventos de luxo, como relembra a poetisa Dalila Teles Veras, ele é um “reduto de inimagináveis tesouros” e foi freqüentado tanto pela comunidade local, quanto pela elite da sociedade da região:


[...] ali passou a nata da sociedade abecedense (e alguns jovens espertos, de uma camada nem tanto, mas igualmente merecedores de sonhos, esgueirando-se escadas acima, salpicando de farinha seus escuros paletós de festa), em noites de música, arte e dança, com todo o glamour que aqueles anos dourados conferiam a tais acontecimentos (VERAS, 1999, p.2).


 

Por meio de artigo de Ademir Médici (DGABC, 1999) consegue-se ter idéia destes eventos que eram realizados naquele espaço: baile de gala em janeiro de 1960, das formandas de 1959 do Conservatório União e Cultura Musical Santa Cecília, de Santo André; festa-baile do concurso nacional Miss Bangu 1961[[iii]], no qual duas orquestras abrilhantaram a festa: Zezinho da TV e Luiz Arruda Paes; em dezembro de 1961, engenheiros de Santo André participam de recepção com a animação musical do pianista andreense Sérgio Callegari. Ademir Médici comenta nesta mesma matéria:


[...] o Moinho da família Chammas era sinônimo de curtição, momentos inesquecíveis, música nobre com cheiro de farinha de trigo nos “longos” e nos ternos azul-marinho quando o elevador passava pelos setores de produção (FERREIRA, 199-).


 

Estes momentos inesquecíveis são recorrentes no discurso de vários moradores da cidade e freqüentadores dos bailes, daquela época, como se pode verificar pelo depoimento do Sr. Augusto Maciel Neto [[iv]]:


A roupa era sempre formal, de terno. Nesses bailes geralmente no Moinho São Jorge, a rigor, a gente tomava banho de farinha, de pó de farinha até chegar lá em cima. [...}Chegava, passava um pano no sapato para tirar o pó da farinha que tinha e o baile lá era maravilhoso. Quem não conheceu é uma pena.


 

Também pelas lembranças do Professor Edésio del Santoro [[v]]:


Agora o mais interessante, o Moinho São Jorge tinha um salão em Santo André que chamava até Salão de Mármore, junto às indústrias, um salão chiquérrimo e as grandes festas eram feitas lá. Então, num dos aniversários da cidade de Santo André nós trouxemos do Rio de Janeiro o grupamento dos fuzileiros navais e foram feitas inúmeras manifestações, e o Moinho São Jorge se prontificou a oferecer um banquete para 500 pessoas, mas um banquete finíssimo, cada mesa tinha um litro de uísque estrangeiro, uma champanhe, vinho estrangeiro, o jantar foi de alto nível, a sobremesa com todos os garçons juntos, um sorvete saindo fumaça em torno de tudo. Foi uma coisa muito bonita!


 

A respeito de lembranças, Marilena Chauí, ao apresentar o livro Memória e Sociedade: lembranças de velhos, de Ecléia Bosi (1979), define que “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição” (CHAUÍ, 1979, p.20). Para isso, as lembranças são resgatadas. São elas que dão suporte a história oral, evidenciando uma memória coletiva, que pode ser entendida como uma somatória de experiências individuais, passíveis de serem utilizadas como fontes históricas, ou entendida como propriedade de conservar certas informações, por meio de um conjunto de funções psíquicas e cerebrais (FREITAS, 2002).

 

Portanto, o Palácio de Mármore passa a ser uma memória coletiva que pode ser escrita na história da cidade, por sua recorrência nos depoimentos, como neste exemplo da Sra. Heleni de Paiva [[vi]]: 


[...] as vizinhas nos preparavam roupas e emprestavam jóias caríssimas. Nós íamos aos bailes no Moinho com jóias que hoje eu posso lhes dizer que valiam uns quinhentos mil reais. Nós íamos e voltávamos a pé, tudo com roupas das vizinhas que cuidavam da gente, e tinha esse trato. Com a obrigação, obviamente, no chá, de nós contarmos com quem nos havíamos dançado. Então, se vivia uma vida coletiva.

 


As reportagens jornalísticas também registram essa memória coletiva a respeito do requinte do salão:


Quando se fala em seu nome, todo mundo muda a entonação da voz. Falar do salão é falar em saudade da época áurea do Grande ABC, quando os grandes bailes e as grandes festas eram realizados no cenário mais requintado que a região já ousou ter. [...] Ali, muitos romances começaram e culminaram em casamento (DGABC, 1986, p.12).


 

As características da coletividade, levantadas pelos depoimentos de vários indivíduos, não deixam dúvidas do que representou os bailes no Palácio de Mármore. É o que demonstra mais este depoimento do Professor Cleonísio Vicente Perazzo:


Por eu dar aula no [Colégio] Brasiliense, eu ia a muitas formaturas. As formaturas eram no Moinho São Jorge, Palácio de Mármore, muito animadas, um espetáculo. Os bailes eram feitos por orquestras, não tinha nada de disco, era Silvio Mazzuca, a Tabajara do Rio. A escola era conhecida pela festa que fazia e o Américo Brasiliense sempre trouxe as melhores orquestras. O traje tinha que ser a rigor, os homens de terno azul e gravata borboleta, as mulheres com longos na cor branca e rosa, era isso que valia.[...] Na época o Desfile Bangu era a coqueluche do momento. Montamos uma festa de arromba, foi um bailão, onde era eleita a miss Bangu, [...] todas as meninas da sociedade entraram, porque saía na Revista O Cruzeiro [[vii]].

 

 

O resgate dessas lembranças pelos depoimentos pessoais permite captar o que as pessoas vivenciaram e experimentaram e buscar características de uma coletividade, pois, como enuncia Halbwachs (1990), a memória é um fenômeno de construção social, concebida tanto individual quanto coletivamente. A memória evidencia todo um sistema de símbolos e convenções produzidos e utilizados socialmente pela narrativa do depoente. A rememoração do passado é feita no presente do indivíduo e determinada pelas condições daquele momento. Trata-se da “comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo” (LE GOFF, 2003:421). Nessa perspectiva, lembrar é uma ação coletiva, pois, embora o indivíduo seja o memorizador, a memória somente se sustenta no interior de um grupo (BOSI, 2003).


Referências bibliográficas

BOSI, Ecléia. O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê, 2003.

CHAUÍ, Marilena. “Os trabalhos da memória”. In: Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

DGABC. Diário do Grande ABC. “O Palácio de Mármore vai voltar...” Diário do Grande ABC. Santo André, 26 jan. 1986. Reportagem obtida nos arquivos do Diário do Grande ABC.

FERREIRA, Joel. [História de Santo André]. Santo André: não publicado, [199-]. Documento do acervo pessoal do Jornalista Ademir Médici.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

VERAS, Dalila Teles. “O moinho e o sonho”. Diário do Grande ABC, Santo André, 21 abr. 1999. Viaverbo. Matéria obtida nos arquivos do Diário do Grande ABC.


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[i] Depoimento da Sra. Maria Amélia Ferreira Perazzo para o Núcleo de Pesquisas de Memórias do ABC/Universidade IMES em julho de 2003. Encontra-se no HiperMemo - Acervo Hipermídia de Memórias do ABC, da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – IMES.

[ii] Depoimento de Farid Nasser Chedid para o Projeto: Rhodia no Brasil: Uma História de Inovações do Museu da Pessoa.Net. Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/MuseuVirtual/hmdepoente/homeDepoente.do?action=ver&key=1147>. Acesso em: 16 set. 2006.

[iii] O referido concurso era promovido pela indústria de tecidos Bangu, sediada no subúrbio carioca de mesmo nome, e que deu origem também a um dos mais antigos e tradicionais clubes de futebol do Rio de Janeiro, o Bangu Atlético Clube.

[iv] Depoimento do Sr. Augusto Maciel Neto para o Núcleo de Pesquisas de Memórias do ABC/Universidade IMES em julho de 2003. Encontra-se no HiperMemo - Acervo Hipermídia de Memórias do ABC, da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – IMES.

[v] Depoimento de Edésio Del Santono para o Projeto Museu Aberto do Museu da Pessoa.Net. Disponível em  <http://www.museudapessoa.net/MuseuVirtual/hmdepoente/homeDepoente.do?action=ver&key=63&forward=HOME_DEPOENTE_VER_GERAL>. Acesso em: 16 set. 2006.

[vi] Depoimento da Sra. Heleni Barreiro Fernandes de Paiva Lino para o Núcleo de Pesquisas de Memórias do ABC/Universidade IMES em julho de 2003. Encontra-se no HiperMemo - Acervo Hipermídia de Memórias do ABC, da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – IMES.

[vii] Depoimento do Sr. Cleonísio Vicente Perazzo para o Núcleo de Pesquisas de Memórias do ABC/Universidade IMES em julho de 2003. Encontra-se no HiperMemo - Acervo Hipermídia de Memórias do ABC, da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – IMES.

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